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Relato da mãe de uma criança trans

Por Victoria Rodrigues

A discussão relativa às pessoas trans mobiliza valores e moralidades que sustentam uma normatividade hétero-cisgênero. Para compreender um pouco dessa experiência, ainda na infância, conversamos com  Thamirys Nunes, mãe de uma criança trans e autora do livro  “Minha Criança Trans?”.

Em nossa conversa pelo whatsapp, Thamirys relatou que desde o início de sua gravidez, desejava muito que “o sexo do bebê fosse masculino”. Na 15° semana ela e o marido tiveram a confirmação de que teriam um filho, que nasceu em 1 de fevereiro de 2015, chamado de Bento.

O dia a dia entre Thamirys e seu filho tinha muito afeto e proximidade, pois passavam grande parte do tempo em casa. No final de 2016, quando tinha um ano e oito meses, começou a demonstrar um crescente interesse pelos brinquedos da irmã (fruto do primeiro casamento do pai). De início, Thamirys e o marido não observaram que isso fosse um “problema”, afinal eram apenas brinquedos e nunca tinham feito nenhum tipo de separação ou limitação.

Peça gráfica com fundo lilás e o título do texto do lado esquerdo superior "Relato de uma mãe de uma criança trans", abaixo o nome da autora Victoria Rodrigues. Do lado inferior direito, há um arco-íris.

Alguns meses após os pais terem voltado a atenção para as preferências da criança, relacionadas aos brinquedos infantis comercialmente feitos numa perspectiva de distinção de gênero, a criança quis usar os sapatos da mãe e negou-se a brincar com os do pai. Todas as vezes que a mãe iniciava seu ritual de beleza/maquiagem lá estava a criança, com muita vontade de experimentar e usar os produtos; porém se recusava quando o pai a chamava para “fazer a barba”. Até mesmo na linguagem, acionava pronomes femininos para falar de si, momentos em que Thamirys a corrigia.

Sem compreender a situação, o comportamento da menina gerou angústia nos pais. Thamirys sentia um crescente desassossego e começou a se perguntar se estava fazendo alguma coisa errada e se responsabilizava pelo comportamento da criança. Pois, à época entendia que o sexo determinava o seu gênero. Ela e o marido conversaram muito e decidiram buscar a orientação de uma psicóloga da área familiar. Após diversas sessões em família, e individualmente com a criança e sua irmã, a profissional orientou que os pais reforçassem a educação da menina na perspectiva masculina. A família esforçou-se para seguir tal orientação profissional. A menina começou a passar mais tempo com o pai, ganhou uma série de novos brinquedos de “menino”, dentre eles, patinetes e bonecos de heróis. O quarto da irmã se tornou mais difícil de ser acessado, bem como os sapatos e as maquiagens da mãe. A criança brincava com os brinquedos à sua disposição transformando os pequenos heróis em bonecas.

Com a evidência de que a menina não se adequava ao comportamento esperado e que forçá-la estava gerando sofrimentos, Thamyres disse que continuou buscando por mais informações e orientações, porém, os relatos de crianças trans eram escassos, ainda mais na primeira infância.

As pesquisas e informações que tiveram acesso levaram os pais a acreditarem na possibilidade de a filha ser transexual. Porém, pensaram que só teriam uma confirmação quando a criança tivesse oito ou nove anos, por isso, lidaram com a situação do modo “como podiam”.

No final de 2018, já com mais de três anos, a menina começou a verbalizar que, para ser feliz, precisava de coisas diferente das que Thamires lhe apresentava, e respondia:  “tudo bem mamãe, pra você ficar feliz a gente leva esse, e pra eu ficar feliz a gente leva o outro”. “Tá bom mamãe, para você ser feliz eu tenho voz de menino, para eu ser feliz tenho voz de menina”.  Essas respostas começaram a ser cada vez mais frequentes e Thamirys se sentia como uma carcereira que aprisionava a sua própria filha.

Os pais procuraram um psiquiatra e Thamirys pode falar de seu sofrimento com a infelicidade que a filha, com quatro anos, demonstrava. O psiquiatra sugeriu então adotarem uma nova política: “liberar em casa e blindar na rua” até que a família encontrasse ajuda especializada. A sugestão foi muito bem recebida pela família.

Thamirys continuou pesquisando e se deu conta que o comportamento da criança não era loucura, e entendeu sobre  transexualidade e compreendeu que identidade de gênero e orientação sexual eram coisas distintas e que ambas se desenvolviam em períodos diferentes na vida.

E foi como “se uma venda caísse de seus olhos”. Tal entendimento lhe deu coragem para buscar orientações mais adequadas.

 Ela encontrou o apoio necessário com o AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), vinculado ao núcleo de Psicologia e Psiquiatria Forense da Universidade de São Paulo (USP). O ambulatório presta acolhimento e acompanhamento exclusivamente a crianças e adolescentes trans, a fila de espera chega a aproximadamente seis a oito meses. Enquanto esperavam na fila pelo atendimento do AMTIGOS, a família continuou com a política de “liberar em casa e blindar na rua”.

Em seu livro, no capítulo chamado “O meu luto”, a autora conta como foi para ela e sua família deixar a filha viver a sua “essência” e se tornar a menina que sempre sentiu ser. Relata a sensação de perda, ao passo que decidiu por validar os sentimentos da criança, presenciando um novo desabrochar.

Durante a transição, Thamirys relatou que enfrentou o preconceito ao dar voz à sua filha. Sua maternidade foi posta à prova recorrentemente e sentia a opressão relacionada à normatividade cisgênero.

Ainda há quem acredite não existir crianças trans, ressaltou Thamirys, que compreendeu que todas as pessoas trans foram crianças e, por uma limitação social/familiar, não foram reconhecidas.  

Em seu livro,  Thamirys compartilha com a leitora e o leitor seu sofrimento e a necessidade de rever todos os seus conceitos de maternidade, de vida e de prioridades. O relato de Thamirys evidencia os modos como a família lidou com a filha trans, por desconhecimento, primeiro. Ao acolher a menina, a família experimentou um novo processo de identificação, ainda na infância. Com isso, ela se propôs a provocar às pessoas a pensar sobre a existência dessas crianças, afinal, disse ela, “as pessoas trans não nascem com dezoito anos”.

Thamirys e a família vivem em Curitiba atualmente. Se você se interessou pela jornada dessa mãe, os livros estão sendo vendido via Direct no seu Instagram @minhacriancatrans.

Supervisão: Judit Gomes
Edição: Judit Gomes e Megg Rayara Gomes de Oliveira

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